Mulheres cientistas ainda sofrem com estereótipos no meio acadêmico Pesquisadoras são 67% no campo de letras e 33% nas exatas
Em 1906, um atropelamento tirou a vida do cientista francês Pierre Curie. A tragédia causou comoção, pois, três anos antes, ele e sua mulher, Marie Salomea Curie, haviam sido contemplados com o Nobel de Física. Sua morte foi registrada pelo jornal norte-americano The New York Times num elogioso artigo, no qual Marie apareceu como “assistente” do marido. Aparentemente, nem o fato de ela ter sido a primeira mulher laureada convenceu o jornalista de que ela pudesse ter feito uma contribuição relevante na investigação de ponta.
O jornal apenas reproduzia os padrões do senso comum da época – os mesmos que a carreira de Marie Curie estava redefinindo. Ela, que fora a primeira mulher na França a alcançar o título de doutora, herdou o emprego do marido e tornou-se a primeira mulher a dar aulas na Universidade Sorbonne – e a primeira a atingir o status de professor titular em uma universidade. Em 1911, tornou-se a primeira pessoa a receber pela segunda vez um Nobel, desta vez em Química. E sozinha.
Um século depois, Marie Curie é celebrada como uma espécie de padroeira desta ciência. O centenário do prêmio serviu como mote para a comemoração do Ano Internacional da Química (veja ed. 16 da revista) e também como oportunidade para discutir como evoluiu o papel da mulher na ciência no período. Se hoje sua presença na academia, na pesquisa e nas instituições científicas não espanta ninguém (na Unesp, por exemplo, mulheres ocupam quatro das cinco pró-reitorias), isso não significa que os obstáculos e dificuldades relacionados às diferenças de gênero tenham sido completamente aplainados.
Pelo contrário, um número crescente de pesquisas sugere que homens e mulheres enfrentam circunstâncias dessemelhantes para construir suas trajetórias na pesquisa. Essas diferenças muitas vezes se traduzem sob a forma de condições menos favoráveis para que elas construam suas carreiras. Para superá-las, pode ser necessário mudar a dinâmica do modo de trabalho do cientista.
No Brasil, por exemplo, embora hoje as mulheres componham metade do total de pesquisadores, sua distribuição é desigual dentro das grandes áreas de conhecimento. No campo de linguística, letras e artes, elas chegam a 67% e nas ciências da saúde, a 60%. Nas ciências exatas, porém, são apenas 33% e nas engenharias, 26%. Os dados são do estudo “A participação feminina na pesquisa: presença das mulheres nas áreas do conhecimento”, conduzido por Isabel Tavares, coordenadora da área de iniciação científica do CNPq. Ela se baseou em números de 2006 do Diretório de Grupos de Pesquisa (DGP) da instituição, da Plataforma Lattes e da Coleta/Capes.
A sub-representação feminina nas ciências “duras” é um fenômeno internacional. O mais recente estudo sobre o tema, realizado pela Universidade da Califórnia em Berkeley e divulgado em dezembro, mostrou que as americanas obtêm pouco mais de 50% dos PhDs nas áreas de ciências sociais e ciências da vida e chegam a ultrapassar os 70% em psicologia. Mas respondem por menos de 28% das teses defendidas em física e por volta de 22,5% em engenharia e matemática.
Desde 2005, a Secretaria de Políticas para Mulheres do governo federal dispõe do programa Mulheres e Ciência, que desenvolve ações sobre o tema. Angélica Fernandes, subsecretária de Articulação Institucional e Ações Temáticas do órgão, explica que a disparidade da presença das mulheres na pesquisa foi um dos gatilhos para o início dos debates sobre gênero na academia. “Estar nas ciências significa participar dos debates de todas as áreas. Física e engenharia também devem ser lugar de mulheres, é importante para a construção da igualdade”, diz
Para Luci Muzzeti, professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara e estudiosa da questão de gênero, essas disparidades refletem as diferenças de status entre as áreas de pesquisa. “Existe uma hierarquia no mundo acadêmico, que faz com que áreas como física tenham mais prestígio do que outras, como nutrição ou enfermagem”, diz. “E as menos valorizadas são as que têm grande presença feminina.”
Ameaça dos estereótipos
As causas para o fenômeno são motivo de debate. Uma linha de argumentação enfatiza as diferenças no processo de educação. Enquanto os meninos são estimulados a mexer com instrumentos associados ao mundo masculino, como ferramentas e máquinas, as meninas passam por um processo de socialização onde tomam contato com temas como o cuidado, os relacionamentos, a alimentação. Esses vieses seriam depois incorporados para os interesses de pesquisa.
Em sua análise, Isabel Tavares observa que mesmo numa área eminentemente masculina, como as ciências agrárias, onde as mulheres são cerca de 35%, elas são majoritárias (57%) na subárea de ciência e tecnologia de alimentos, que envolve um setor da vida social tradicionalmente atribuído às mulheres.
Essa concentração em certas subáreas é verificada mesmo nos campos onde a presença das mulheres é grande, como as ciências sociais aplicadas. No Brasil, elas são a maior parte dos pesquisadores em economia doméstica (88%) e serviço social (82%), mas minoria em economia (31%) e direito (40%). Para Isabel os números confirmam a tendência de destinar “as atividades de finanças e gerência para os homens, bem como a tradição de jurista, cabendo à mulher a economia do lar e o atendimento à sociedade”. Algo semelhante acontece na medicina, onde o número de mulheres tem crescido desde a década de 1990, mas é mais evidente em pediatria, dermatologia, ginecologia, clínica geral. “O universo da ciência reproduz a condição social da mulher”, complementa Angélica.
Os estereótipos também teriam o poder de afastar as mulheres jovens da opção por determinadas carreiras. É o caso da velha história de que homens e mulheres têm aptidões desiguais para o raciocínio matemático. Professores bem sabem que, até por volta dos 12 anos, meninos e meninas possuem habilidades numéricas semelhantes. A partir de então, o interesse delas pela matéria tende a diminuir, bem como suas notas. Se as causas para a queda de desempenho devem-se à socialização, à biologia ou a uma combinação dos dois fatores, ainda não se sabe. Mas a simples crença de que mulheres são piores em matemática parece ter efeito sobre elas.
Um dos primeiros experimentos a mostrar isso foi feito em 1999 e envolveu 30 garotas e 24 rapazes, calouros de psicologia da Universidade de Michigan (EUA). Todos tinham habilidades matemáticas semelhantes e gostavam da disciplina. Foram divididos em dois grupos e submetidos a um teste de matemática. Antes da prova, os professores submeteram as meninas de um dos grupos a uma “condição de ameaça” – afirmaram, falsamente, que os rapazes costumavam sair-se melhor no exame. Ao final, essas moças tiveram um desempenho significativamente menor do que as voluntárias que não foram expostas àquela observação.
Ao longo dos anos 2000, cerca de 300 outros testes identificaram o mesmo efeito. Muitas vezes, nem foi preciso colocar a condição de ameaça de forma tão clara. Solicitar ao estudante que indicasse seu gênero antes de iniciar a prova, ou colocar as meninas para serem testadas em salas onde eram claramente minoria já piorava o resultado delas. Os autores do estudo pioneiro concluíram que se as diferenças de desempenho entre os sexos fossem devidas apenas à biologia, as meninas se sairiam mal em qualquer circunstância. Mas o fato é que sem a pressão, mesmo que sutil, do estereótipo, os resultados dos dois gêneros foram semelhantes.
Na última década, o crescimento das pesquisas em psicologia evolutiva, que tenta identificar bases biológicas para comportamentos humanos, jogou mais lenha nessa fogueira. Em 2005, o então reitor da Universidade Harvard, Lawrence Summers, declarou acreditar que as causas para haver menos mulheres nas áreas que envolvem matemática estão ligadas às diferenças cerebrais entre os gêneros. Steven Pinker, psicólogo do MIT e popstar da psicologia evolutiva, concordou com o argumento e escreveu um livro em apoio.
Uma enxurrada de críticas e contra-argumentos se seguiu nesses cinco anos. O mais recente, de 2010, é o estudo Why so Few?, um calhamaço recheado de estatísticas elaborado pela National Science Foundation americana.
Ele analisa, por exemplo, os resultados do SAT, o sistema de avaliação dos estudantes americanos. Em 1980, a proporção de alunos de 13 anos que alcançavam em matemática nota superior a 700 no teste – indicativa de elevadas habilidades – era de 13 meninos para cada menina. Em 2010, a proporção tinha caído para 3:1. “Se a causa da diferença de desempenho fosse apenas biológica, as proporções não se alterariam tão rapidamente”, argumentam os autores. “Ainda que a biologia desempenhe algum papel, ela claramente não responde por todas as diferenças”, dizem.
Um dos mais eloquentes ataques contra o argumento biológico veio de alguém que conhece os dois lados: o neurocientista Ben Barres, transexual e pesquisador da Universidade Stanford. Em 2006, ele publicou um artigo na revista Nature onde torpedeava a argumentação de Summers e
Pinker e denunciava a permanência de preconceitos contra mulheres mesmo após o movimento feminista: “Quando eu era mulher, fui a única da minha turma do MIT a resolver um difícil problema de matemática. Meu professor, em vez de me parabenizar, comentou que meu namorado provavelmente tinha resolvido por mim.”
Barres diz que, como transexual, é consciente de que existem diferenças biológicas inatas no modo como funcionam os cérebros de homens e mulheres. Mas não acredita que isso implique numa menor capacidade cognitiva feminina. “A falta de autoconfiança é o principal fator que leva as mulheres a abandonarem carreiras nas áreas de ciência e engenharia. Quando elas escutam repetidamente que não são boas o bastante, sua autoconfiança desaba e suas ambições encolhem.”
Reflexo das condições sociais
A boa notícia é que na academia brasileira a situação está um pouco melhor. Aqui a presença feminina em áreas como astronomia e física está respectivamente na casa dos 23% e 19%, de acordo com os dados do CNPq, contra 17% e 13% nos Estados Unidos. Esse não é um fenômeno restrito às ciências exatas. Em países como Brasil e Argentina, a participação de mulheres na força total de pesquisadores é maior do que a média mundial, inclusive quando comparados a países com grande tradição científica.
Ironicamente, essa disparidade em prol das mulheres pode estar sendo facilitada por outra desigualdade, a social. É a opinião de Léa Velho, professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp. Pesquisando a participação de mulheres nos cursos de física da Unicamp, desde a graduação até o doutorado, Léa descobriu que elas ocupam 12% das vagas, contra, por exemplo, 5% na Alemanha. “O que permite a mais mulheres de classe média no Brasil [em comparação com países desenvolvidos] fazerem carreira na academia é a possibilidade que têm de contratar mulheres de classe baixa para darem conta do trabalho doméstico”, diz.
As brasileiras dispõem também de uma rede familiar mais capaz de fornecer apoio. “Se uma pesquisadora tiver um filho na Alemanha, muito provavelmente não terá dinheiro para contratar uma empregada, nem poderá depender da mãe para ajudá-la. Terá de tomar conta da criança até que ela tenha idade para ir para a escola, o que representará um gap em sua vida profissional”, complementa.
Outro quesito bastante sensível que pode diferenciar as experiências dos homens e das mulheres que seguem carreiras científicas no Brasil é a dedicação às atividades de pesquisa e de ensino. É o que sugere um levantamento feito por Jaqueline Leta, pesquisadora do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ. Em 2007, ela coletou dados sobre 1.946 docentes dos 71 programas de pós-graduação da UFRJ, buscando identificar diferenças na atuação dos gêneros. Em uma das análises, ela considerou a nota conferida pela Capes a cada programa, que varia de 1 a 7. Jacqueline descobriu que quanto menor a nota, maior a presença feminina. Nos programas avaliados com conceito 4, por exemplo, elas representavam 44% dos docentes, enquanto que naqueles com nota 7 elas eram por volta de 30%.
Jacqueline também avaliou indicadores de pesquisa e docência em seis áreas: engenharia, ciências exatas, ciências humanas, letras e artes, ciências biológicas e ciências da saúde. Em três anos, nas engenharias, por exemplo, a média de artigos publicados foi de 60 para homens e apenas 10 para as mulheres. Nas ciências exatas, eles publicaram em média pouco mais de 20 artigos e elas, pouco mais de 10. Em saúde, elas ficaram à frente: 20 versus 15. E nas letras e artes, 15 publicações para elas, pouco menos de 10 para eles.
Ao comparar dados relativos à docência e à orientação de alunos, porém, Jacqueline encontrou outro panorama. Ela analisou a média de disciplinas de pós-graduação organizadas por cada docente, ao longo de três anos. E quantos alunos cada gênero orientava. Nas duas tarefas, a participação de homens e mulheres em cada tarefa ou foi bastante próxima ou elas ficaram à frente.
Jacqueline ressalta que, embora pesquisa e docência sejam duas das atividades fins da academia, elas não são vistas da mesma forma. “A universidade foi pensada no Brasil inicialmente para ser um lugar de ensino. A atribuição da pesquisa surgiu depois. Mas as duas áreas não têm o mesmo peso. É comum encontrar disciplinas que são ministradas por um aluno ou bolsista, para que o docente possa aproveitar aquele tempo para se dedicar a pesquisar. A importância atribuída à pesquisa é muito maior, especialmente nas áreas mais competitivas”, exemplifica.
A própria Capes, ao emitir um conceito sobre um programa, lembra a pesquisadora, analisa as questões relacionadas à pesquisa. “Seguramente os programas com nota 4 podem ser bons em outras atividades, como o ensino. Mas o que a Capes avalia é o pesquisador, não o docente.”
A hipótese de Jacqueline é que o mesmo fenômeno pode estar ocorrendo na academia brasileira como um todo. Os homens teriam uma tendência a dedicar mais tempo e energia à pesquisa, e esta lhes oferta um status mais elevado. As mulheres teriam uma tendência maior a se dedicar às atividades docentes e de orientação, especialmente na graduação. A pesquisadora prepara agora uma pesquisa nacional, a ser conduzida e concluída ainda em 2011, para testar a ideia.
Teto de vidro
Mas talvez a diferença mais perceptível entre homens e mulheres na academia esteja na possibilidade de ascensão na carreira. Dados colhidos entre uma vintena de países da União Europeia mostram que além de estarem em menor número nos cursos de doutorado, as mulheres são minoria absoluta nas posições universitárias mais elevadas, que oferecem mais acesso aos recursos para pesquisa (veja quadro à esquerda).
Nos EUA, o fenômeno ganhou o apelido de “teto de vidro”. Segundo a National Science Foundation, a proporção de homens e mulheres que alcançam o status de full professor, o mais alto da carreira, é de 10 para 1. A média é a mesma na Inglaterra. Na União Europeia, 18% dos full professors são mulheres, segundo dados da Comissão Europeia publicados em 2009.
O mesmo fenômeno acontece no Brasil.Um indicador disso é o pequeno número de mulheres contempladas com bolsas de produtividade do tipo 1 A, fornecidas pelo CNPq. Segundo dados de Isabel Tavares coletados em 2006, embora naquele ano as mulheres correspondessem a 78% dos pesquisadores em nutrição e 48% em medicina, entre os contemplados com essas bolsas, a participação feminina caía para apenas 14% e 22%, respectivamente.
Outro sinal é a proporção de mulheres que lideram grupos de pesquisa (veja tabela abaixo). “Nos anos 1990, descobriu-se que havia menos mulheres atuando como líderes”, lembra Léa Velho. “A hipótese era que ao longo do tempo se alcançaria uma proporção igual entre homens e mulheres, mas isso ainda não aconteceu”, diz.
A falta de mulheres nos altos postos da universidade chamou a atenção até do ex-presidente Lula. “Não foi citado o nome de uma mulher. Isso é uma coisa que nós vamos ter que reparar daqui para frente. A não ser que alguém prove que não tem mulher cientista”, observou em 2003, durante a posse dos integrantes do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.
Além dos vários fatores já abordados na reportagem, um em especial contribui com a baixa representação feminina nos postos mais elevados da academia: a dificuldade em conciliar a vida profissional com a familiar. Para Léa Velho, as origens deste conflito remontam às origens da ciência como profissão: “Foi na Europa do século 19 que as primeiras universidades e empresas começaram a contratar pessoas com o objetivo de fazer pesquisa, e a ciência começou a se institucionalizar como atividade profissional. E todos esses profissionais eram homens. Naquela época, à mulher cabia cuidar da casa e dos filhos. Ela era excluída da vida pública”.
Assim, desenvolveu-se um modelo de carreira de pesquisador cujo horário de trabalho não se limitava ao expediente comercial, mas incluía trabalho experimental à noite, nos fins de semana, férias etc.
Quando, no início do século 20, as mulheres começaram aos poucos a ter acesso aos níveis mais altos de educação e a interessar-se pela atividade científica, viram-se obrigadas a adotar o estilo de vida imposto pela profissão, sem ter com quem partilhar os deveres da vida doméstica.
Até no enfrentamento desse conflito Marie Curie foi pioneira, conforme registrou em suas memórias: “Tomar conta de nossa pequena Iréne e de nossa casa sem renunciar à atividade científica tornou-se um problema sério”, escreveu. Na época, ela contou com a ajuda inusitada do sogro, que se mudou para sua casa e se tornou babá da neta recém-nascida.
A situação, descrita há mais de um século, ainda ocorre no cotidiano de muitas pesquisadoras. Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química da Unesp em Araraquara e primeira mulher a presidir a Sociedade Brasileira de Química (de 2008 a 2010), conta como sua dedicação à carreira lhe valeu críticas. “Muitas vezes fui taxada de mãe pouco amorosa porque deixava meus filhos em casa e viajava para participar de congressos. Mas nenhum deles ficou louco”, relembra, divertida. Mesmo assim, ela reconhece que a maternidade afetou suas escolhas profissionais. “Minha carreira deslanchou tarde, só consegui fazer o pós-doutorado aos 45 anos.” Hoje ela é pesquisadora 1B do CNPq.
Na época, ela optou por levar os filhos adolescentes para viverem com ela nos EUA, enquanto o pai ficou no Brasil. “Eu trabalhava na universidade, pegava eles na escola, voltava a trabalhar... Ao retornar pro Brasil, pesava 6 kg a menos”, lembra. Léa também vivenciou isso. “Quando eu trabalhava como pesquisadora em agronomia na UnB, nos anos 1970, o chefe do departamento marcava uma reunião toda segunda, às 18 h, para debater papers”, conta. “Só que eu tinha que sair às 18h15 para pegar meu filho na escola. Era responsabilidade minha. E o chefe de departamento sempre dizia com ironia que mãe é assim mesmo.” Em suas entrevistas feitas com pesquisadoras na Unicamp, já no século 21, ela percebeu que a dinâmica não mudou. “Vi mulheres que diziam que tinham sorte porque o marido as ajudava com as crianças. Não é um regime de compartilhamento igualitário”, diz.
Políticas favoráveis à família
Este não é um fenômeno brasileiro. Em 2005, nove das principais universidades americanas – entre elas instituições do porte de Stanford, Harvard e MIT – reuniram-se para lançar um documento onde reconheciam “a necessidade de tornar “a carreira acadêmica compatível com as responsabilidades do cuidado de uma família”. No centro da polêmica está o regime conhecido como tenure track, no qual jovens professores universitários são submetidos a um estágio probatório de anos. Só depois poderão ser contratados com estabilidade. Este período probatório exige alta produtividade e coincide com os anos mais férteis das mulheres. Levantamento feito em 2010 por pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley entre mais de 20 mil professores estáveis norte-americanos mostrou que 78% das mulheres com este status não tinham filhos, enquanto 73% dos homens no mesmo cargo eram pais (veja quadro abaixo). A disparidade reflete as diferentes condições enfrentadas por homens e mulheres na academia americana.
“No atual modelo, os professores podem casar, ter filhos, participar da vida familiar e ainda investir numa carreira competitiva porque dispõem do apoio do cônjuge, que lida com a maior parte das responsabilidades domésticas”, refletem os autores do relatório Beyond Bias and Barries, publicado em 2007 pela Academia Nacional de Ciências dos EUA. E prosseguem: “Esse modelo não leva em consideração as necessidades das mulheres que desejam ser mães, pois requer concentração absoluta no pico de seus anos de reprodução. Nem daquelas que são divorciadas ou viúvas e têm que arcar com as obrigações domésticas sem o apoio de um cônjuge”.
Na universidade americana já se debate a criação de “políticas favoráveis à família” como forma de reduzir a carga que recai sobre as mulheres. Algumas começam a aparecer. Ano passado, a vinda de uma física de Harvard ao Brasil para palestrar em um congresso só foi possível porque a universidade pagou as passagens de seus dois filhos pequenos, bem como do pai, que tomou conta deles. Desde 2007, a Universidade Stanford reembolsa os gastos dos jovens professores com creches e babás, em valores que podem chegar a US$ 20 mil por ano. Por aqui, em 2005 o CNPq instituiu a prorrogação de tempo de bolsa para mestrandas e doutorandas que ficam grávidas – até então as bolsistas não contavam com licença-maternidade. Ano passado, a Capes aderiu à medida.
Algumas mulheres, porém, não querem trocar a maternidade pelo sucesso na carreira. “Muitas não querem assumir posições de poder na universidade para não prejudicar sua convivência familiar”, afirma a física Elisa Saitovich, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. “Este é um ponto que precisa ser trabalhado com as próprias mulheres”, reconhece. Referência para o debate sobre o tema no país, Elisa começou a se envolver com ele em 2002, quando foi convidada a dar uma palestra na 1ª Conferência sobre Mulheres na Física, organizada pela União Internacional de Física Pura e Aplicada. A experiência levou-a a organizar uma conferência em 2005 no Rio de Janeiro, além de vários eventos preparatórios em países latinos.
No primeiro desses encontros, foram listadas 27 sugestões para aumentar e apoiar a presença feminina na pesquisa. Uma delas era justamente a questão da extensão do tempo de bolsa para grávidas. Outras sugestões incluíram a inclusão, no Currículo Lattes, do nascimento de filhos e a solicitação da oferta de serviços de cuidado de crianças nos congressos.
Mas para Elisa o mais importante é melhorar a qualificação das pesquisadoras, de forma que elas possam competir melhor por postos mais elevados. “E assim como existem editais de financiamento que reservam 30% dos recursos para pesquisas feitas no Nordeste, acho importante termos um acompanhamento do percentual de projetos de mulheres que são contemplados. Não acho que se deva abrir mão da qualidade na hora da seleção nem criar uma cota. Mas é importante observar esta área com um olhar de gênero também”, diz.
E a presença de mulheres nos postos de comando pode acabar tendo um efeito multiplicador. É o que pensa Maria José Giannini, pró-reitora de Pesquisa da Unesp. “A escolha de quatro mulheres para as pró-reitorias [da Universidade] foi um ato de ousadia. Acho que isso é importante principalmente para quem está ingressando na academia. Talvez elas já encontrem menos problemas do que nós tenhamos enfrentado para galgar a carreira.”
Tais medidas, porém, não excluem a necessidade de mudanças mais profundas. “Acho que temos de repensar a maneira como se trabalha na universidade. Muitas vezes, nos cargos mais altos, espera-se que a pessoa tenha uma disponibilidade que é incompatível com o que a maioria das mulheres quer para sua vida. Será mesmo necessário que um reitor enfrente jornadas de 13 horas de trabalho?”, questiona Léa.
“O que precisa mudar é o senso comum”, argumenta Luci. “É ele que enxerga algumas profissões como masculinas e outras como femininas, que estabelece como missão da mulher cuidar da casa e da prole, que faz com que a mulher enfrente dificuldades para ser julgada competente para ocupar posições de poder. Essas iniciativas apenas irão amenizar as faltas”, diz. Se hoje ninguém mais acha estranho que uma mulher ganhe um prêmio Nobel, é porque o senso comum mudou bastante de Marie Curie para cá. Talvez seja preciso encontrar maneiras para que ele continue mudando – mas a uma velocidade maior.